quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Vigílias


ESCREVO-TE A SENTIR tudo isto
 e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata
da fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto
ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco
morde a
sua imobilidade

habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de
romã
repara como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar

 (AL BERTO, 2004, p. 49).


terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Pergunta-me


Pergunta-me

se ainda és o meu fogo

se acendes ainda

o minuto de cinza

se despertas

a ave magoada

que se queda

na árvore do meu sangue


Pergunta-me

se o vento não traz nada

se o vento tudo arrasta

se na quietude do lago

repousaram a fúria

e o tropel de mil cavalos


Pergunta-me

se te voltei a encontrar

de todas as vezes que me detive

junto das pontes enevoadas

e se eras tu

quem eu via

na infinita dispersão do meu ser

se eras tu

que reunias pedaços do meu poema

reconstruindo

a folha rasgada

na minha mão descrente


Qualquer coisa

pergunta-me qualquer coisa

uma tolice

um mistério indecifrável

simplesmente

para que eu saiba

que queres ainda saber

para que mesmo sem te responder

saibas o que te quero dizer



Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O Teu Olhar nos Meus Olhos



"Sempre onde tu estás

Naquilo que faço

Viras-te agarras os braços


Toco-te onde te viras

O teu olhar nos meus olhos


Viro-me para tocar nos teus braços

Agarras o meu tocar em ti


Toco-te para te ter de ti

A única forma do teu olhar

Viro o teu rosto para mim


Sempre onde tu estás

Toco-te para te amar olho para os teus olhos."
Harold Pinter 

Segredo


"Não contes do meu

vestido

que tiro pela cabeça


nem que corro os

cortinados

para uma sombra mais espessa


Deixa que feche o

anel

em redor do teu pescoço

com as minhas longas

pernas

e a sombra do meu poço


Não contes do meu

novelo

nem da roca de fiar


nem o que faço

com eles

a fim de te ouvir gritar"


Maria Teresa Horta, in “Poesia Completa” 

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