terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Poema da minha alienação

Demoro-me no outro lado de mim
porque me atrai
esse ser impossível
que sou
esse ser que me nega
para que seja ainda eu
Porque desejo esse alguém
que me invade e me ocupa
que me usurpou a palavra e o gesto
me fez estrangeiro do meu corpo
e me deixou mudo, contemplando-me.
Lanço-me na procura da minha pedra
no infindável trabalho
de me reconstruir
recolhendo os sinais do meu desaparecimento
percorrendo o revés da viagem
para regressar a um lugar inabitável.
Todas as vezes que me venci
não me separei do meu sonho derrotado
e, assim, me fiz nuvem
reparti-me em infinitas gotas
para que fosse bebido, vertido, transpirado
e voltasse de novo a ser céu..."

Mia Couto in "Poema da minha alienação"
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terça-feira, 27 de outubro de 2015

ESPERA

Horas, horas, sem fim, 
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.


EUGÉNIO DE ANDRADE, In As Mãos e os Frutos

Nunca me esqueci de ti

EU E TU


Dois! Eu e Tu, num ser indissolúvel.

Como Brasa e carvão, centelha e lume, oceano e areia,

Aspiram a formar um todo, - em cada assomo

A nossa aspiração mais violenta se ateia...


Como a onda e o vento, a lua e a noite, o orvalho e a selva,

- O vento erguendo a vaga, o luar doirando a noite,

Ou o orvalho inundando as verduras da relva

- Cheio de ti, meu ser d'eflúvios impregnou-te!


Como o lilás e a terra onde nasce e floresce,

O bosque e o vendaval desgrenhando o arvoredo,

O vinho e a sede, o vinho onde tudo se esquece,

- Nós dois, d'amor enchendo a noite do degredo.


Como parte de um todo, em amplexos supremos,

Fundindo os corações no ardor que nos inflama,

Para sempre um ao outro, Eu e Tu pertencemos,

Como se eu fosse o lume e tu fosses a chama.



António Feijó

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

TU


Pela tua nudez
toda a glória do mundo
cabe em minhas mãos
Ardo
Corre em mim tumultuada
uma lava ardente
que só em ti descobre rumo
e apaga o tempo.



Edgardo Xavier
Publicado no Recanto das letras
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EDGARDO XAVIER (a publicar)

Retirado de:

sábado, 10 de outubro de 2015

Distância e silêncio

Foi bom saber-te com a resistência acutilante de quereres recusar ser mandado pelos filhos. Espero que essa força continue a manifestar-se, ainda que, depois, faças o que eles dizem. Eles estão mais capazes de perceber o que será melhor, por muito que doa (e eu sei que dói)...

Felizmente o esqueleto melhora! E, felizmente também, a cabeça mantém o curso e o desejo indómito mantém-se "aceso" e inalterável. 

Como é bom receber-te assim, inteiro.

Gosto de ti contra o meu peito. Mesmo sem apertar, os abraços gratificam-me da mesma maneira e, se magoam menos assim, vamos abraçar-nos, contra o peito, devagarinho...

De tempos a tempos (nomeadamente quando chego a casa), gosto de descansar a minha cabeça no teu colo. Como saio retemperada depois dessa memória/imaginação!...


Receio a distância e o silêncio...


terça-feira, 29 de setembro de 2015

RETRATO


Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?


CECÍLIA MEIRELES, in ANTOLOGIA POÉTICA

(1963; Nova Fronteira, Brasil, 2001; Relógio D'Água, 2002)

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

ESPIGA


O meu corpo
tombado na cama
como trigo vergado na eira
é um corpo
onde vadiou a chama
flamejante e altaneira.

Mas este corpo
não é ainda trigo ceifado
pois tem seiva, força, raíz
é apenas um corpo
saciado, em deleite e descansado
na eira dos corpos viris.


Vem, seduz o meu corpo
sorve a haste sob o lençol
sussurra uma doce cantiga
e verás o meu corpo
erguer-se aprumado ao sol
mostrando a força da espiga.



JOÃO MORGADO, in PARA TI (Kreamus, 2014)

sábado, 19 de setembro de 2015

Soneto (de Chico Buarque na voz de Ney Matogrosso)


Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono

Com que mentira abriste meu segredo
De que romance antigo me roubaste
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo

Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar, com que navio
E me deixaste só, com que saída

Por que desceste ao meu porão sombrio
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio

Chico Buarque



sexta-feira, 18 de setembro de 2015

ESTOU MAIS PERTO DE TI PORQUE TE AMO


Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.


Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.


Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.


Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.


Joaquim PESSOA, in OS OLHOS DE ISA [edição especial, Litexa Editora (1983)]; O POETA ENAMORADO (Ed. Esgotadas, 2015)

sexta-feira, 19 de junho de 2015

«Volta até Mim no Silêncio da Noite»

Volta até mim no silêncio da noite 
a tua voz que eu amo, e as tuas palavras 
que eu não esqueço. Volta até mim 
para que a tua ausência não embacie 
o vidro da memória, nem o transforme 
no espelho baço dos meus olhos. Volta 
com os teus lábios cujo beijo sonhei num estuário 
vestido com a mortalha da névoa; e traz 
contigo a maré cheia da manhã com que 
todos os náufragos sonharam. 

Nuno Júdice, in 'O Movimento do Mundo' 

domingo, 31 de maio de 2015

El sonido del silencio - Flauta de pan - Música instrumental

Som puro e raro!!! - Com Flauta Pan

BLUES FÚNEBRE


FUNERAL BLUES (1936)

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He Is Dead,
Put crêpe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever: I was wrong.

The stars are not wanted now: put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Pour away the ocean and sweep up the wood;
For nothing now can ever come to any good.

W. H. AUDEN


Tradução proposta por: http://poesiailimitada.blogspot.pt/2006/01/w-h-auden.html


PUBLICADA POR JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES

Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Impeçam o cão de latir com um osso enorme,
Silenciem os pianos e ao som abafado dos tambores
Tragam o caixão, deixem as carpideiras carpir suas dores.

Deixem os aviões aos círculos a gemer no céu
Rabiscando no ar a mensagem Ele Morreu,
Ponham laços crepe nas pombas brancas da nação,
Deixem os sinaleiros usar luvas pretas de algodão.

Ele era o meu Norte, meu Sul, meu Este e Oeste,
Minha semana de trabalho, meu Domingo de festa
Meu meio-dia, meia-noite, minha conversa, minha canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: foi ilusão.

As estrelas já não são precisas: levem-nas uma a uma;
Desmantelem o sol e empacotem a lua;
Despejem o oceano e varram a floresta;
Porque agora já nada de bom me resta.

W. H. AUDEN

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Vigílias


ESCREVO-TE A SENTIR tudo isto
 e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata
da fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto
ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco
morde a
sua imobilidade

habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de
romã
repara como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar

 (AL BERTO, 2004, p. 49).


terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Pergunta-me


Pergunta-me

se ainda és o meu fogo

se acendes ainda

o minuto de cinza

se despertas

a ave magoada

que se queda

na árvore do meu sangue


Pergunta-me

se o vento não traz nada

se o vento tudo arrasta

se na quietude do lago

repousaram a fúria

e o tropel de mil cavalos


Pergunta-me

se te voltei a encontrar

de todas as vezes que me detive

junto das pontes enevoadas

e se eras tu

quem eu via

na infinita dispersão do meu ser

se eras tu

que reunias pedaços do meu poema

reconstruindo

a folha rasgada

na minha mão descrente


Qualquer coisa

pergunta-me qualquer coisa

uma tolice

um mistério indecifrável

simplesmente

para que eu saiba

que queres ainda saber

para que mesmo sem te responder

saibas o que te quero dizer



Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O Teu Olhar nos Meus Olhos



"Sempre onde tu estás

Naquilo que faço

Viras-te agarras os braços


Toco-te onde te viras

O teu olhar nos meus olhos


Viro-me para tocar nos teus braços

Agarras o meu tocar em ti


Toco-te para te ter de ti

A única forma do teu olhar

Viro o teu rosto para mim


Sempre onde tu estás

Toco-te para te amar olho para os teus olhos."
Harold Pinter 

Segredo


"Não contes do meu

vestido

que tiro pela cabeça


nem que corro os

cortinados

para uma sombra mais espessa


Deixa que feche o

anel

em redor do teu pescoço

com as minhas longas

pernas

e a sombra do meu poço


Não contes do meu

novelo

nem da roca de fiar


nem o que faço

com eles

a fim de te ouvir gritar"


Maria Teresa Horta, in “Poesia Completa” 

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